A abolição sem reparação, a liberdade sem renda e a migração para cidades sem direito a casas foram algumas das muitas forças sociais e históricas que fizeram os negros subirem os morros e se tornarem maioria nas favelas cariocas.
“São os quilombos modernos”, classifica com assertividade o jornalista Rene Silva, fundador do jornal Voz das Comunidades, exemplo emblemático de como a comunicação popular e antirracista reivindica a liberdade que a Lei Áurea não garantiu à população negra, apesar de ter encerrado oficialmente a escravidão, em 13 de maio 1888.
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“A abolição é inconclusa [incompleta] porque foram negados a nós muitos dos nossos direitos. Fomos jogados na sociedade para nos virarmos e fazermos nosso corre. E, por isso, as favelas são esses espaços de resistência e de potência, porque é onde está a criação e a inovação das pessoas que foram deixadas para trás”, diz René Silva.
Ele coordena redações do Voz nas favelas do Complexo da Alemão, Complexo da Penha e Vidigal, com 80% das equipes formadas por comunicadores pretos.
O projeto Voz das Comunidades começou há 17 anos, quando René tinha apenas 11. Desde então, ele foi nomeado um dos 30 brasileiros mais influentes com menos de 30 anos pela Revista Forbes Brasil; foi considerado um dos 100 negros mais influentes do mundo pela organização Mipad, em Nova York, e recebeu o Prêmio Mundial da Juventude durante conferência em Nova Déli, na Índia. Todos esses prêmios reconhecem uma missão que ele define em poucas palavras: “mostrar a realidade da favela às pessoas que moram dentro desses espaços a partir de sua própria perspectiva”.
“O papel da comunicação é de manter as pessoas informadas sobre suas próprias realidades, com uma visão que não seja a mesma tratada pelos grandes veículos de comunicação. Ainda hoje, a maioria das pessoas que moram nas favelas têm acesso principal às emissoras de televisão grandes, que ainda agem de forma preconceituosa e racista em suas pautas”, critica o comunicador.
“A gente vê, ainda hoje, grandes jornais e grandes veículos mostrando apenas o tráfico, mortes, tiroteios e coisas do tipo relacionadas às favelas. A gente vê que essa mídia está muito ultrapassada. No Voz das Comunidades, a gente entra nessas pautas, mas não são as pautas prioritárias”.
Além de prêmios, a luta para produzir a comunicação popular de dentro da favela rendeu também repressão: em 2016, ele chegou a ser detido quando cobria a remoção da Favelinha Skol, no Complexo do Alemão, com o midiativista e fotógrafo Renato Moura. “Um dos policiais arrancou o celular da minha mão, e eu fui atrás. Nesse momento, ele me deu voz de prisão por estar desobedecendo ordem. Nisso, fui algemado e levado para a delegacia”, disse Rene Silva ao próprio Voz das Comunidades após ser liberado.
O contraponto que o jornal comunitário propõe não é esconder a violência, mas humanizar a abordagem, mostrando quando a padaria para de funcionar com um tiroteio, quando o mototáxi precisa interromper a locomoção dos moradores e quando as escolas são obrigadas a parar as aulas.
“A gente faz uma comunicação para que as pessoas daqui sejam comunicadas do que está acontecendo, para mantê-las seguras dentro das suas casas. As crianças que moram nas favelas e vão às escolas, muitas vezes, aprendem a se proteger de tiroteios, balas perdidas e operações policiais antes mesmo de aprender a ler e escrever. Nisso também está o quilombo moderno”, contextualiza.
“Nosso papel de comunicação, enquanto quilombos que são as favelas, é mostrar o quão potentes nós somos, quanta gente incrível existe aqui dentro, e isso não é falado nos espaços midiáticos convencionais”.
O esforço de comunicadores negros como ele está virando o jogo e pautando a mídia hegemônica, avalia Rene Silva, que já foi roteirista e consultor em novelas e programas do Grupo Globo. “O que a gente via de estereótipo na mídia falando sobre a realidade das pessoas pretas no país mudou muito a partir de mídias comunitárias e independentes”, reflete.
“A maneira como a gente se comunica certamente impactou na maneira como a grande mídia vem melhorando. Ainda tenho muitas críticas. Há muitos problemas, obviamente, mas acho que melhorou muito e isso tudo tem impactado de forma positiva no progresso das pessoas pretas”.
Movimento crescente
A coordenadora de graduação da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (ECMI/FGV), Renata Tomaz, aponta que a presença de criadores de conteúdo negros nas redes sociais é um movimento crescente, tanto em quantidade de influenciadores e comunicadores quanto em amplitude de temáticas.
“Certamente, esses conteúdos têm um papel importante quando a gente fala de práticas antirracistas no debate público, mas eu diria que eles vão além”, avalia a pesquisadora. “Para além de falar de raça e de racismo, essas pessoas estão ali para falar do que elas conhecem. Elas dominam conhecimentos e têm experiências válidas e produtivas que elas podem e querem compartilhar. É crescente também esse movimento de produtores de conteúdo negros e negras promovendo essa subjetividade negra em diferentes setores, camadas e temáticas”.
Observar o esforço de seus familiares para superar situações de escassez e garantir um futuro mais sólido para a sua geração ajudou a baiana Amanda Dias a entender que a ancestralidade tem muitas lições financeiras que não estão no discurso hegemônico dos influenciadores de finanças. Somadas à vivência no candomblé e ao estudo da história preta brasileira, as lições aprendidas fizeram a comunicadora de Salvador perceber que tinha muito a compartilhar com outras pessoas que, como ela, não se identificam com histórias de enriquecimento de homens brancos de outros continentes. Foi assim que ela fundou o Grana Preta, uma página de conteúdo em que pauta reflexões sobre emancipação e prosperidade, algo que nada tem a ver com o acúmulo de dinheiro.
“A maioria dos influenciadores de finanças têm como mote enriquecer, tornar pessoas ricas. E, quando a gente olha para a riqueza no nosso país, ela vem muito do acúmulo, muitas vezes de um acúmulo que teve origem no processo de escravidão”, contextualiza.
“Quando trago a prosperidade, é algo que não está ligado ao acúmulo, e, sim, ao bem estar, ao bem viver. Sair da lógica da sobrevivência para entrar na lógica da vida, de ter um plano de vida. Às vezes, eu não quero me aposentar aos 30 anos, eu quero parar de trabalhar em um emprego que me explora e me trata mal e abrir meu próprio negócio, ser meu próprio chefe e ter flexibilidade de horário. Não é ficar falando pra pessoa de como fazer seu primeiro milhão, quando, às vezes, ela quer trabalhar de forma mais tranquila, e não entrar nessa competitividade voraz e perder saúde nessa lógica de enriquecimento por meio do acúmulo”.
Filosofia Iorubá
A prosperidade proposta por Amanda Dias no Grana Preta tem como base a filosofia iorubá, e ela acredita que pautar finanças pessoais por esse ângulo é também contestar a lógica imposta pelos colonizadores europeus e outras elites brancas que vieram depois. O resgate que ela tenta comunicar inclui olhar exemplos como o das ganhadeiras da Bahia, mulheres pretas escravizadas que, de pouco em pouco, conseguiam juntar dinheiro para comprar suas alforrias.
“Não foi só o colonizador, não foram só os europeus que desenvolveram filosofia e conhecimento sobre dinheiro e finanças. O povo preto também desenvolveu, a partir da sua visão de mundo”, pondera. “Eu preciso divulgar, porque eu gostaria de ter recebido esse conhecimento quando eu era mais nova. Na escola, por exemplo. Será que a minha relação com o dinheiro não teria sido muito diferente se, desde o meu ensino fundamental, eu soubesse quem foram as ganhadeiras? Se eu soubesse quem foram as irmandades e as confrarias de mulheres negras que juntavam joias e dinheiro? Se eu conhecesse esse lado, essa potência da minha história, será que eu também não poderia construir uma autoestima e uma relação com o dinheiro muito melhor?”
Produzir conteúdo de forma diferente da maioria dos influenciadores de finanças também permite questionar o discurso recorrente no meio de que a pobreza é culpa dos próprios pobres. Amanda busca fazer um ajuste fino que também não pode tirar do indivíduo a responsabilidade e a potência de tentar mudar sua realidade. A influenciadora conta que, em vez de prometer o primeiro milhão em cinco passos, ela propõe que, se você se organizar hoje, você consegue ampliar a linha de largada para o seu filho, dando a ele uma base mais sólida para construir sua jornada. Para ela, essa perspectiva quebra a ansiedade gerada pelas redes sociais por objetivos como se aposentar com 30 anos, algo inatingível para a grande maioria.
“Quando um influenciador de finanças transfere toda a culpa para o indivíduo, além de ser um discurso raso e muito fácil de fazer, ele não tem compromisso de mudar a vida daquela pessoa. Que tipo de mudança a gente promove na vida dessa pessoa se ela não consegue refletir também que o meio que ela vive tem impacto sobre a forma com que ela lida com dinheiro?”, questiona a influenciadora, que afirma que esse discurso hegemônico também vem de um lugar de privilégio.
“Tem muito influenciador que passa uma visão de que não é vantajoso você comprar um imóvel. Esse é um processo que ignora completamente a realidade da maioria da população que não teve acesso à casa própria, cujos pais não tiveram uma casa própria, e que pode ser a primeira geração a adquirir um imóvel para chamar de seu. Isso vai muito além da matemática básica, envolve sonhos, envolve vivência das pessoas. Ter uma casa própria é a garantia, por exemplo, de que, em um momento de crise financeira, você não vai precisar morar na rua”.
Focada no bem viver e em uma vida que vai além das necessidades básicas e permite o acesso às diversas formas de lazer, cultura e liberdade, a promoção da prosperidade que Amanda prega é a própria abolição concluída, ainda distante da maioria da população negra, avalia a influenciadora.
“Essa abolição foi incompleta porque, até hoje, a maioria da população negra compete muito por coisas que são básicas, como moradias, saúde, educação e emprego. O que é um objetivo para uma pessoa branca e rica, um objetivo financeiro, para a pessoa pobre é quase inatingível. Então, ela tem objetivos mais realistas. Às vezes, a pessoa quer se organizar para fazer uma viagem, para conseguir ter uma reserva para não se preocupar se vai faltar dinheiro no final do mês. Às vezes, o objetivo da pessoa é conseguir esse bem estar que deveria estar disponível para todo mundo, mas infelizmente não está. Toda a organização financeira da pessoa vai para garantir o básico, sendo que, se fosse diferente, ela poderia com essa organização financeira realizar sonhos”.
Algoritmos racistas
Jornalista e fundadora da revista Brejeiras, voltada para mulheres lésbicas, Camila Marins conta que a atuação de comunicadores negros ampliou a circulação de narrativas positivas sobre essas populações e pressiona os meios de comunicação a pautarem o antirracismo e também a contratarem pessoas negras para seus quadros de trabalhadores. Por outro lado, ela defende que as redes sociais, mesmo sendo instrumentos dessa mobilização, têm algoritmos racistas que expõem a população negra ao discurso de ódio.
“É um desafio muito grande fazer com que a população negra esteja na internet sem sofrer narrativa de ódio e acesso a desinformação, e que os algoritmos façam com que a comunicação negra chegue ao maior número de pessoas”, afirma.
Camila Marins e outras três jornalistas fundaram a revista Brejeiras em 2018 diante de um cenário de apagamento e fetichização de mulheres lésbicas na mídia. O quadro, que já era difícil, se agravou com o assassinato da vereadora Marielle Franco no mesmo ano, com a campanha e eleição da extrema direita à Presidência da República no ano seguinte, e com a pandemia de covid-19 a partir de 2020.
“Com o assassinato, a gente adiou o lançamento, porque foi um trauma coletivo, e fizemos mês depois. Fizemos quatro edições da Brejeiras, rodamos o país e até fora, na Alemanha, utilizando essa comunicação impressa como uma forma de mobilização da luta e de organização coletiva, para fortalecer o movimento social e as nossas pautas lésbicas. E, aí, vem o governo Bolsonaro. É mais um baque muito forte, porque aprofunda a dificuldade de financiamento, e o aumento dos empregos precários dificultam muito a nossa situação, não só como Brejeiras, mas como população. E a pandemia foi um momento de luto nacional e internacional, lidando com o isolamento também. Não conseguimos fazer a Brejeiras nesse momento”, lembra ela.
Com as mudanças na política nacional e a melhora do cenário epidemiológico, o grupo prepara a volta da revista impressa. O projeto continuou de forma ininterrupta na internet desde a sua fundação, e voltará ao impresso com uma edição que contará com a participação das leitoras, relatando sua sobrevivência à pandemia de covid-19. A revista pretende disputar o significado de “sapatão preta” como positivo, enfrentando discursos de fetichização e criminalização dessas mulheres.
“Na Brejeiras, a gente tem uma política feminista e antirracista que a gente bota em prática com a maioria de mulheres negras sendo entrevistadas, com suas imagens impressas. Nas revistas, a gente sempre vê nas fotos uma maioria de mulheres brancas, com aquele padrão de corpo magro. Então, a gente traz outros formatos de estética e de ética”, defende. “A gente contribui para disputar um discurso de pensar que, se a coisa tá preta, é porque ela tá boa. E pensar que a estética negra tem beleza, é bonita, tem vida, que não está só associada a morte, desemprego, servidão, escravização e colonização pelos quais passamos. O discurso antirracista é para ultrapassar esse discurso colonial, racista e violento pelo qual mulheres negras passam todos os dias, tanto nas ruas quanto nos meios de comunicação”.
Fomento à comunicação
A própria história sobre o fim da escravidão, ressalta Camila, é objeto de disputa da comunicação antirracista neste momento, para o resgate da luta da população negra contra o sistema escravista e por liberdade, contra um senso comum de que ela veio “das mãos da princesa Isabel”, que assinou a Lei Áurea. Nesse contexto, ela defende o fortalecimento e a garantia de orçamento para o ensino da história afro-brasileira nas escolas, a reserva de faixas de programação nos veículos de comunicação para pautas negras e a criação de editais de fomento para impulsionar comunicadores negros e comunitários.
“A gente precisa de uma lei de fomento à comunicação negra no Brasil, que garanta faixas de conteúdo da pauta negra na comunicação pública, privada e nas redes sociais. A gente precisa impulsionar e fomentar cada vez mais para que esses comunicadores cheguem a mais pessoas. Eles estão espalhando informação e letramento racial na internet e fazendo um trabalho muito importante de disputa de narrativas, mas não dá para a gente romantizar a precariedade e a falta de financiamento. A gente precisa de fomento do Estado”.
Com a transformação proposta pelos comunicadores negros já em circulação na internet, Camila Marins convida mais jovens negros, e principalmente mulheres negras, a produzirem conteúdo sobre suas realidades, a falarem de todos os temas e a demarcarem seu lugar como maioria da população.
“Comunicação é um direito humano, portanto se apropriem da comunicação popular, alternativa, e se apropriem para fazer muita comunicação a partir da sua visão de mundo, daquilo que está ali no seu território, no seu local de trabalho, na sua casa, no que está acontecendo ao seu redor. Fala do buraco da rua. Fala do postinho que tá sem médico. Fala da sua casa, fala da falta de comida, fala sobre amor. A gente também pode falar de beleza. A gente pode falar de estética, a gente pode falar de tanta coisa bonita. Façam comunicação, a comunicação é instrumento poderoso de transformação da sociedade, de transformação desse projeto de Brasil que a gente quer, justo, solidário e para todas as pessoas, pensando principalmente a maioria dessa população, as mulheres negras”.
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